domingo, 14 de fevereiro de 2021

Na pátria da hipocrisia uma pá de cal no sonho de democracia

 

Eis-nos diante de um ministro do STF, fisionomia condoída, “perturbado” e querendo entender “como permitimos isso acontecer”, o que “fizemos de errado para que institucionalmente produzíssemos isso, um setor que cria sua própria constituição e opera seguindo seus sentimentos de justiça”.

O posto no primeiro parágrafo colhemos de Eric Nepomuceno no 247. O excelentíssimo em tal estado de inocência perplexo com o que se tornou a ‘lava jato’ — reconhecido pelo articulista Gaspard Estrada, do NYT, como “o maior escândalo judicial da história” — tem nome: Gilmar Mendes.

Promovido o intróito que nos leva a este dominical, convocamos o caríssimo e paciente leitor a ratificar conosco o significado de hipocrisia através no atual “pai dos burros”, a Wikipédia:

 

Hipocrisia é o ato de fingir ter crenças, virtudes, ideias e sentimentos que a pessoa na verdade não possui, frequentemente exigindo que os outros se comportem dentro de certos parâmetros de conduta moral que a própria pessoa extrapola ou deixa de adotar

 Vivesse Dante Alighieri nesta terra brasilis (de onde divisaria as quatro estrelas que diz ter visto quando deixa o Inferno para buscar o Paraíso), realizaria uma Divina Comédia rica em círculos. Não lhe bastariam nove no Inferno, onde desdobrou o oitavo em dez. Na sexta vala deste oitavo círculo reservou-a para os simoníacos, rufiões, sedutores, hipócritas etc.

Mas Dante não conheceu algumas peças desta singularidade chamada Brasil. Muito provável que criasse/arranjasse uma vala muito especial, dentro do oitavo para o “perturbado” Gilmar Mendes, porque sua conduta exigiria muito do chumbo existente na Terra para vesti-lo.

Por que o ilustre ministro do STF nos serve de apoio ao presente texto? Porque para nós é ele o expoente singular da hipocrisia encastelada no STF, representando uma parcela considerável dos que ali estão.

Ilustremos o raciocínio por etapas.

Noticiado o absurdo. Cômodo, porque conveniente, explorar a mesquinhez funcional (pautada no que se tornou comum entre parcela considerável do Judiciário, do Ministério Público, sem falar no papel decisivo de Procuradores da República em todos os níveis: atuação político-partidária) exposta por uma procuradora, Carolina Rezende: “Precisamos atingir Lula na cabeça (prioridade nº 1)”.

Partindo de uma indagação primária: teria ela, em si e funcionalmente, competência institucional para materializar o que disse? Claro que não. Sabia-o, no entanto, que não estava só. Tinha do juiz de Curitiba ao STF, passando por TRF-4, STJ, Procurador-Geral da República e quejandos outros, o apoio à sua pretensão. Apenas mera agente do absurdo por cometer.

Um general do exército (não o de Caxias, razão por que com letra minúscula, revisor!) confessa — sem qualquer preocupação com a Constituição da República, tampouco com as instituições jurídico/judiciárias — que pressionou, depois de decisão conjunta do alto comando da arma, para que o STF julgasse contra o Direito e negasse um habeas corpus a Lula em 2018. (247)

Um vice-presidente (também com minúscula, revisor!) confessa que tramou contra a instituição republicana para ascender ao poder (o que certamente lhe assegurou lugar cativo no nono círculo do Inferno).

No imediato da declaração do general sublevador, o ministro Lewandowsky publicou artigo na Folha, do qual destacamos, a partir do 247:

 

“E mais: para desencorajar possíveis tentações autoritárias, a Lei Maior prudentemente prevê que o chefe do Executivo e seus subordinados respondem por crime de responsabilidade, ou mesmo comum, pelo cometimento de eventuais excessos no exercício dos poderes extraordinários".

 Ironia para o instante, considerando a ponderação de Sua Excelência: quem vai pôr o guizo no gato?

Ultrapassemos a decantada hipocrisia e acolhamos a preocupação de Lewandowski. Partamos para a realidade, em torno da qual uma nada velada vocação do inquilino do Alvorada para perpetuar-se no poder se possível, não custa tentar não está em horizonte distante.

No imediato da vitória retumbante, elegendo presidentes da Câmara e do Senado, tudo começou a andar e de lambuja a autonomia do Banco Central foi sacramentada na Câmara Federal (339 x 114) mesmo em dia em que a casa não estava cheia (faltaram 60 deputados). Com nada mais, nada menos que 75% dos votos presentes a vitória do sistema financeiro-bancário poderia ser bem maior.

Este escriba de província indignado com os hipócritas (políticos, magistrados, ministros, procuradores etc.) a serviço da tragédia que se abate sobre o país indaga, altaneiro: quem duvida de que a pauta sonhada pelo inquilino do Alvorada não se materialize?

Ampliação do direito ao porte de armas; propaganda de armas na televisão, rádio, revistas e jornais, redes sociais e aplicativos; a excludente de ilicitude (que visa beneficiar policiais, que passariam a matar “em legítima defesa”); redução da maioridade penal; exploração mineral em terras indígenas; ensino domiciliar na educação básica etc.

Por razões tais não cremos em dias melhores. Cidadãos armados e polícias amparadas em suas ações letais (que se tornarão “legítima defesa”) tenderão a assegurar o golpe maior: tornar o país uma ditadura militar, ampliar o poder das milícias e calar qualquer voz contrária. Afinal, as mordomias e sinecuras, incluindo alimentares, não podem ser privilégio apenas do Judiciário e devem manter-se nos quartéis.

Na esteira da fala de um general golpista e do temor revelado por um ministro do STF (que não tem quem ponha o guizo institucional onde devido), temos que um outro ministro do STF está vitorioso no que tanto buscou ainda que “perturbado” e, sem dúvida alguma, trouxe para a pátria da hipocrisia aquela primeira pá de cal que acaba de ser lançada no sonho de democracia.


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